A Casa Ranzini

UMA CASA FLORENTINA NA LIBERDADE

A   Residência do Arquiteto Filisberto Ranzini

O arquiteto Ranzini, primeiro morador

Felisberto Ranzini (18.08.1881 – 22.08.1976) veio criança para S. Paulo onde estudou no Liceu Coração de Jesus e no Liceu de Artes e Ofícios. Ingressou no Escritório de Ramos de Azevedo – no qual trabalhou por mais de quarenta anos – em 1904, a convite de Domiziano Rossi, sucedendo-o na chefia da seção de projetos com a morte deste em 1920. A partir de então passa a responder por grandes obras do escritório tais como o Palácio da Justiça, o Clube Comercial no Anhangabaú (demolido) e o Mercado Municipal. Deste último, recentemente restaurado, Carlos Lemos nos diz:

“Obra importantíssima para a cidade foi o novo mercado. São Paulo nunca fora bem servido de edifícios para aquele fim. Quase tudo improvisado, sem a higiene necessária e aquém das necessidades. Cerca de 1920 a idéia do mercado definitivo tomou corpo e, em 1924/25, Ranzini enfrentou o problema. Não sabemos bem, e isso nem nos interessa neste momento, como foram as demarches levadas a cabo para concretizar a idéia. Sabemos que a estrutura de uma planta modulada veio da Alemanha ou, pelo menos, o seu projeto. Coube a Ranzini “vestir” o edifício, lhe dando a “dignidade” arquitetônica que o Ecletismo tardio estava a exigir. Houve-se bem o projetista, pois o prédio é de uma nobreza exemplar. Foi inaugurado em 1933 e até hoje continua sendo um marco referencial do Patrimônio Ambiental Urbano.”

LEMOS, Carlos A. C. – Ramos de Azevedo e seu Escritório. S. Paulo, Pini, 1993, p. 96.

Sobre Ranzini temos ainda as seguintes informações, coligidas em 1953:

“Felisberto Ranzini, pintor, aquarelista e decorador, a cuja gentileza devemos muitas das noticias de que nos valemos no decorrer deste estudo, foi o último a aparecer no estúdio de Ramos de Azevedo e foi também o último a sair do grupo.
Nasceu em San Benedetto Pó em 1881; veio para São Paulo muito jovem e estudou com Domiziano Rossi, a quem substituiu mais tarde como professor de desenho arquitetônico no Liceu de Artes e Ofícios e como professor de composição decorativa e modelagem na Escola Politécnica de São Paulo.
Além de ter desenhado pessoalmente muitos elementos decorativos para as obras de Ramos de Azevedo, Ranzini projetou em estilo florentino ou seguindo a nova corrente “Art Nouveau”: dois palacetes na Avenida Angélica (um na esquina da Avenida Higienópolis e outro na esquina com a Praça Buenos Aires); o “Clube Comercial”; o prédio Condessa Penteado (Rua Boa Vista, 15); as fachadas do Mercado Municipal, cujas plantas foram elaboradas na Alemanha; a casa em que ele morava (Rua Santa Luzia, 31) e ainda algum outro edifício de menor importância. Além disso, tratou da execução do Palácio da Justiça.
Em 1945 publicou juntamente com Edgard Cerqueira César uma interessante série de aquarelas, reevocando, com um desenho seguro uma vivaz técnica impressionista, breves cenas de caráter, de ruas, praças e recantos do Rio de Janeiro, atualmente desaparecidos, roupas e costumes esquecidos (Terras e águas de Guanabara. Aquarelas de Felisberto Ranzini. Texto de Afrânio Peixoto, São Paulo, Ind. Graf. Lanzara, 1945).”

SALMONI, Anita & DEBENEDETTI, Emma – Arquitetura Italiana em São Paulo. S. Paulo, Editora Perspectiva, 1981, pp. 93 e 95 (1ª. ed. em italiano, 1953)

Felisberto Ranzini publicou ainda “Estylo Colonial Brasileiro” (S. Paulo, Amadeu de Barros Saraiva, 1927) trabalho pioneiro nessa matéria, antecedendo o clássico “Documentário Arquitetônico” de José Wasth Rodrigues, iniciado em 1918, mas editado somente em 1945.


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Uma casa cheia de histórias

Em terreno adquirido por 15:715$000 (quinze contos, setecentos e cinqüenta mil réis) de Elvira Giubergia e outros (havido por inventário do pai, Domingos Giubergia, em 1898) segundo escritura lavrada em 12 de junho de 1922, Felisberto Ranzini ergueu sua residência na então rua Santa Luzia nº 3, concluída em 1924 como se pode observar em seu frontão.
Com dois pavimentos (térreo e 1º andar) e porão habitável, seus cômodos são assim identificados na cópia da planta sem data assinada pelo arquiteto: a entrada coberta leva ao hall que dá acesso à sala de visitas, com vista para a rua, e à sala de jantar; desta última sai o corredor que conduz à copa e à cozinha, passando antes pelo escritório do arquiteto e por um lavabo / WC; na copa, um lanço de escadas interno leva ao porão que reproduz a divisão do pavimento térreo: sob a copa e a cozinha, a dispensa; sob o lavabo / WC, uma “câmara escura”, o laboratório fotográfico do arquiteto; sob o escritório, a adega; sob a sala de jantar, entrada e hall, dois depósitos (com porta independente para a área externa); sob a sala de visitas, um espaço identificado como “malas”. Do hall temos acesso ao primeiro andar por três lanços de escadas; chegamos ao que o arquiteto qualifica de “antecâmara” e que conduz ao terraço coberto sobre a entrada, ao dormitório da frente e ao amplo dormitório de casal; novo corredor alinhado com os de baixo leva ao “quarto”, ao “banho e WC” e a um terraço descoberto que corresponde à laje da copa / cozinha. Erguida posteriormente, a garage nos fundos do lote, segundo cópia da planta registrada na Diretoria de Obras e Viação da Prefeitura Municipal – alvará nº 4911 – em 07.10.1926, vem igualmente assinada por Ranzini, desta vez identificado como “projectista e constructor”. 
A casa filia-se ao denominado “estilo florentino” – plasmado no Quatrocento e recolocado em voga na Itália da passagem dos séculos XIX / XX – temperado com as liberdades ecléticas então vigentes e praticado com destaque pelo arquiteto como já assinalaram anteriormente Salmoni & Debenedetti. Era um estilo particularmente apreciado por setores abastados da colônia italiana – saudosos da pátria e sempre dispostos a homenageá-la – de então: na avenida Paulista, “passarela” do ecletismo historicista desses tempos, tínhamos nessa linguagem arquitetônica a bela propriedade de João Batista Scuracchio (1); nas proximidades, à rua Frei Caneca, milagrosamente ainda temos um exemplo digno de nota no bem conservado Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro “Casa di Dante”. Infelizmente a maioria desses exemplares mais significativos desapareceu; ao lado de dois ou três imóveis na rua dos Ingleses e em algumas versões simplificadas – ou com “citações” ou variações do estilo, notadamente, entre outras, através da típica “bifora toscana”, estreitas janelas em duplo arco suportadas por delgadas colunas – espalhadas pela área do centro expandido (e, na maioria dos casos, sem nenhum tipo de proteção legal), não há mais nada de uso residencial representativo dessa corrente estilística. De outros tipologias merecem isolado relevo: a antiga sede do Banco Francês e Italiano de Giulio Micheli à rua 15 de Novembro, inspirado diretamente nos palácios florentinos; o edifício comercial restaurado pela livraria Saraiva à Praça João Mendes; de livre inspiração toscano-florentina temos ainda o Palácio das Indústrias de Domiziano Rossi no Parque D. Pedro II, totalmente restaurado para sediar a Prefeitura no governo Luiza Erundina e que hoje espera por uma nova destinação.
A lateral e os fundos do imóvel não apresentam nenhum traço estilístico que os diferenciem da maioria das casas em tijolo aparente, beiral e janelas com venezianas construídas no pós-guerra; como era comum no período, já a entrada com o terraço superposto conjuntamente com a fachada receberam, apoiados em embasamento de pedra, requintado tratamento estrutural e decorativo. Um detalhe da fachada que chama especial atenção é, por trás da data de conclusão da obra, o fascio romano, resgatado pelo fascismo e que, por sinal, lhe tomou o nome. Na garagem, a nota curiosa fica por conta do parapeito frontal do terraço que esta suporta e que lembra as ameias de um forte.
No interior da casa, dois cômodos merecem distinção: as salas apaineladas de visita e jantar sendo que, no teto desta última, destacam-se delicados afrescos com motivos vegetais; segundo o neto de Felisberto, Renzo Emiliano Ranzini, estes teriam sido pintados por Oscar Pereira da Silva, autoria sujeita a confirmação. Segundo a mesma fonte, o escritório do arquiteto também teria as paredes – hoje totalmente recobertas – decoradas com pinturas, demandando uma prospecção que, por insuficiência de meios e prudência, preferimos não fazer. Nos corredores, hall e antecâmara, corre um friso decorativo de autoria do próprio arquiteto. Dos primeiros tempos da casa permaneceram ainda a coifa da cozinha e o aquecedor a gás “Cosmos” de “Ernesto de Castro & C.” – cunhado de Ramos de Azevedo.
Três gerações da família Ranzini habitaram o imóvel por mais de 80 anos; este foi adquirido pelos atuais proprietários dos netos do arquiteto, Renzo Emiliano Ranzini e Lello Sisto Ranzini em 05 de setembro 2006; Renzo Ranzini, pintor como o avô e nascido na casa em 1930, foi seu morador até 2006. Esse conjunto de peculiaridades talvez explique o nível de conservação do imóvel mantido até o presente. Praticamente tudo é original e o restauro levado a efeito ao longo de 2007 preservou tanto quanto o possível todas as suas características construtivas e decorativas.

(1) TOLEDO, Benedito L. – Álbum Iconográfico da Avenida Paulista. São Paulo: Ed. Ex Libris, 1987, p. 47.


No quintal, a Fonte de Santa Luzia

No muro localizado entre o imóvel em questão e o vizinho, encontra-se afixada uma pequena placa de ferro de 0,7 x 0,6 cm com as iniciais R A S E que, segundo Renzo Ranzini ouviu de seu avô, tratar-se-ia da indicação do local da antiqüíssima “bica de Santa Luzia”, lacrada pelo Serviço Sanitário em princípios da década de 20. Sobre essa fonte, encontramos o seguinte:

“A primeira preocupação de saber das águas de que se utilizava a população urbana da Capital de São Paulo partiu do capitão-general Bernardo José Lorena, governador da Capitania entre 1788 e 1797 (...) em 1791 (...) determina ao químico Bento Sanches d’Orta a análise das fontes existentes em redor da povoação e nas quais a população acostumara-se a abastecer-se. (...) d’Orta apresentou ao capitão-general o seguinte resultado (...) N. 9. Água da fonte de Santa Luzia. É fria, ácida, a base de terra argilosa, (...) Excelente água para se beber e a melhor (de 12 fontes) até agora analisada. (...) Em 1920, o Serviço Sanitário de São Paulo, divulgou as análises realizadas pelo químico João Batista da Rocha de 24 fontes, algumas das quais já haviam sido analisadas por d’Orta (...). Água nº. 2 – Fonte de Santa Luzia, na rua Bonita (É a mesma vertente de Santa Luzia, examinada por d’Orta em 1791). Água colhida a 12-7-1919 às 12 h e 15m. (...) É uma água fortemente poluída.

FREITAS, Afonso A. de – Dicionário do Município de São Paulo. São Paulo: Gráfica Paulista - Editora, 1929 pp. 138-140 (tomo I)

Ao pé da bica de Santa Luzia, às vésperas da independência, deu-se um inusitado – para a mais que provinciana S. Paulo de então – evento da pré-história de nossa crônica policial e que acabaria por se imbricar nos acontecimentos de 1822, envolvendo Maria Domitila Castro Canto e Melo, futura Marquesa de Santos. Alberto Rangel, em estilo rebuscado, assim descreve o episódio:

“Consta que em 1819 o coronel João de Castro Canto e Melo (pai de Maria Domitila) era, em S. Paulo, morador da chácara que pertenceu a João Rademaker e contígua à grande quinta de D. Francisco de Assis Lorena (filho do conde de Sarzedas, D. Bernardo José de Lorena, Capitão General e Governador de S. Paulo entre 1788 e 1797), ocupando ambos a extensa área, desfigurada posteriormente pelos arruamentos consentidos por D. Ana Maria de Almeida Lorena Machado (filha de D. Francisco). A fortuidade das colocações facilitaria certas espiadelas e manejos de que o alferes Felício Pinto Coelho de Mendonça (que casara com Maria Domitila em 1813) teria a prova abrindo os olhos e pilhando na bica de Santa de Luzia cujo caminho se fazia entre as duas propriedades, a mulher resvalado aos pés de um fauno, que seria o próprio D. Francisco de Assis Lorena, pelo que o mesmo Felício, por duas vezes, nos músculos da coxa e no baixo ventre da ninfa (que além do mais, estava grávida... do marido), plantara a sua faca de roceiro em escarmento da traição. A fonte pejada de ver tais cenas, em análise de Bento de Sanches de Orta, mandada fazer pelo pai de D. Francisco, era excelente a beber e o povo atribuía-lhe virtude para a cura dos olhos, daí a denominação patronímica da dominicana bolonhesa e cega voluntária. Hoje a ironia da sorte a tornou linfa impotável e pêca, enjoativa e laxante; seus nitratos e cloretos fundamentaram em 1919 a recusa da Municipalidade de a receber em legado.
No processo de 1824, D. Domitila declarou ter-se dado o crime quando se encaminhava a postulante para a casa da casa da “Prima D. Maria Inácia” marcando-lhe o local, o dia e a hora inolvidáveis...”

RANGEL, Alberto – Dom Pedro I e a Marquesa de Santos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1969, p. 86 (1ª. ed. em 1916)

A bica de Santa Luzia aparece na Planta Histórica da Cidade de São Paulo (1800-1874) de Afonso de Freitas no centro da chácara da citada Ana Maria de Almeida Lorena Machado (que, por sinal, mandou construir na rua Tabatinguera a ainda existente capela de Santa Luzia em 1901). A rua de Santa Luzia onde se localiza o imóvel, assim como a Conde de Sarzedas, o início da Conselheiro Furtado e da Tomás de Lima (antiga rua Bonita) só foram abertas nas terras dessa chácara em fins do século XIX: na planta desenhada por Jules Martin em 1890, o trecho em questão, compreendido entre as ruas Tabatinguera, da Glória e dos Estudantes (antigo “caminho da bica” segundo Afonso de Freitas) ainda permanecia vazio; na planta organizada por Gomes Cardim em 1897 já se delineia o arruamento atual.
A eventual existência de vestígios dessa relíquia colonial exigiria comprovação através de prospecções arqueológicas (quiçá com levantamento geofísico através de radar), para o que colocamos desde já o imóvel à disposição.

Texto: Waldir SalvadorePercival Tirapeli
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Dados técnicos
Projeto e Construção: Filisberto Ranzini 
Ano: 1924
Localização: Rua Santa Luzia, 31 – Liberdade – São Paulo
Proprietários atuais: Waldir Salvadore e Percival Tirapeli

"A casa da Rua Santa Luzia, 31, que foi construída pelo arquiteto Filisberto Ranizni para sua residencia, em 1924, é tombada pelo Compresp e Condephaat, os órgãos de preservação de patrimônio público em nível municipal e estadual."